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O Fim de um Ciclo

Sem fazer apologias ao marxismo, nesses tempos bicudos para a democracia brasileira, lembro-me de Lenin e da teoria da curvatura da vara. Vivemos o final de um ciclo em 1985, com o primeiro presidente civil depois de vinte e um anos de ditadura militar. Final de um ciclo inicio de outro. Aspectos políticos, econômicos, sociais, etc., sofreram guinadas radicais em sua condução, percepção e tratamento pela sociedade. Veio a constituição dita cidadã. Garantista, retratando em seu texto visível receio de um retrocesso politico. De uma volta a ditadura. Mas minha análise prende-se exclusivamente ao poder judiciário, seus organismos assessórios e complementares, percebendo que saímos de uma ditadura imposta pelo poder executivo e ingressamos em outra imposta pelo poder judiciário. Ambas, graças a um legislativo fraco, corrupto e omisso.

Não será novo se eu escrever sobre impunidade, sobre tudo acabar em pizza, ou como não se punem meliantes na república das bananas. Também não será novo eu afirmar que os mais diversos segmentos sociais clamam por mudanças.  Mas mudanças normalmente partem da sociedade para as leis. Os legisladores, sempre esperam as coisas acontecerem para depois serem regulamentadas, coibindo abusos e distorções, mas respeitando fatos sociais e os costumes. Alguns povos sequer criam leis e o poder judiciário apenas aplica a justiça a partir dos costumes. É o caso dos países anglo-saxônicos que praticam a common law.

Face a uma grande pressão midiática e também a imaturidade do poder judiciário e dos organismos complementares, com liberdade de atuação muito recente e formados em sua grande maioria por profissionais muito jovens, concursados e com curta experiência de vida, a sociedade brasileira está passando por um processo inverso ao normalmente esperado, de imposição de regras ditadas por burocratas para modificação dos costumes. Parece-me que os burocratas do judiciário resolveram mudar os costumes a partir de normas de construção pretoriana. Pode parecer contraditório, mas os clamores não correspondem às atitudes sociais que continuam sendo corruptas. O cidadão que pede o fim da corrupção é o mesmo que utiliza um Windows pirata e que tem em sua residência um “gatonet”, baixa músicas na Internet sem pagar direitos autorais e assiste a filmes piratas por serem mais baratos. Se o judiciário fosse punir com prisão hoje todos os brasileiros corruptos, certamente não haveria cadeia suficiente apenas para os brasileiros que vendem seu voto.

Nessa esteira, leis que foram criadas em decorrência do civil law, estão sendo ignoradas e com base em um sem numero de artifícios hermenêuticos os juízes estão ultrapassando as leis e aplicando uma justiça de base legal pretoriana. Como disse, em atenção ao clamor popular e midiático. Cito os recentes episódios de ilegalidades praticados pela polícia, com endosso do ministério público e proteção dos juízes, envolvendo Eike Batista e também os executivos das empreiteiras fornecedoras da Petrobrás na operação lava jato. Bem, se os costumes estivessem mudando, o que não estão, então a criação e aplicação das leis deveria acompanhar as mudanças.

No momento em que escrevo esse artigo, tomo conhecimento que, o Supremo Tribunal Federal, em votação de proposta de súmula vinculante, tratando do assunto “crédito presumido de IPI”, já tinha cinco votos a favor da súmula que aprovava o aproveitamento dos créditos, quando o Ministro Zavascki pediu vistas face ao argumento do Ministro Marco Aurélio, contrário a aprovação da súmula. Transcrevo trecho da notícia:

“Para Marco Aurélio, a divergência não poderia ser superado porque o Supremo ainda não julgou a constitucionalidade do artigo 11 da Lei 9.779 de 1999. Para ele, o dispositivo legal diz justamente o contrário do que estava sendo proposto no plenário do Supremo. “ A lei expressamente previu o contrário do que nós estaríamos acertando em súmula vinculante. Não me consta que possamos mais que o Congresso Nacional”, afirmou o ele. Ele ainda reforçou que é necessário que o STF antes trate da constitucionalidade da lei para depois editar a súmula. “

Nosso direito tem base na civil law, na lei escrita com origem legislativa.  A lei é a principal e primeira fonte do direito. A jurisprudência é formada a partir dela. A aplicação dos costumes, somente se justifica na ausência de leis específicas ou gerais aplicáveis para o caso concreto. Havendo lei a jurisprudência não prevalece muito menos a doutrina e costumes.

No estado de direito os fins não podem justificar os meios. Para punir crimes o estado deve aparelhar a sociedade com leis adequadas e eficazes. Ignorar leis para punir crimes é gerar instabilidade jurídica para toda a sociedade. Quando se ferem direitos de um individuo se está ferindo direitos de todos.
Nesse contexto o funcionário público não assume e não decide o advogado não exerce a advocacia com plenitude, o empresário não empreende o investidor não investe e a economia não se desenvolve. A estabilidade social e econômica passa pela previsibilidade futura.

O estado democrático de direito, no Brasil da civil law, deve observar o direito posto, o dito direito positivo. A decisão do magistrado deve ser estritamente vinculada. A interpretação hermenêutica não pode extrapolar certos limites. Não pode o magistrado decidir contra legis em uma forçada interpretação hermenêutica, como está por fazer o STF na questão dos créditos de IPI. O direito comparado tem bem definido quando deve ser aplicado.

Jurisprudência deverá ser aplicada apenas na ausência de lei e deve ser formada a partir das leis aplicadas ou da ausência delas. A doutrina poderá ser aplicada também apenas na ausência de lei. Os costumes devem ser observados pelo legislador e pelo magistrado para criação e para mudanças do sistema normativo legislativo ou pretoriano. Espero que estejamos no fim de um ciclo e que tudo leve a normalidade democrática, pois não é possível admitir um judiciário autoritário, arbitrário, que não se coaduna com os tempos atuais de democracia.