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Tecnologia amplia atuação de clientes na solução de conflitos e desafoga Justiça

As mudanças no perfil da advocacia e as inovações tecnológicas, impulsionadas pela pandemia do coronavírus, estão promovendo um maior protagonismo dos clientes na solução de conflitos e problemas jurídicos. O resultado é que muitas disputas acabam se resolvendo de maneira online antes mesmo de chegarem ao Judiciário.

Há grande variedade de opções conforme a complexidade dos assuntos jurídicos, e, nas situações mais simples, cada vez mais é possível que uma pessoa encontre uma solução sozinha em plataformas digitais.

Nos casos mais complicados, também de maneira online, os clientes podem colaborar com seus advogados na elaboração de acordos, evitando assim os custos e a demora de uma ação na Justiça.

Até mesmo o registro oficial de uma marca, como o de uma hamburgueria, por exemplo, conta com serviços do tipo “faça você mesmo”, no qual a assessoria jurídica entra só para monitorar se o cliente está dando os passos certos no processo.

Com a chegada da Covid-19, ganhou força a prática da tentativa de solução de conflitos por meio de acordo, o que na linguagem jurídica recebe o nome de mediação.

A forma mais simples de mediação é realizada quando uma plataforma intermediária de vendas online, como a gigante Amazon, abre um canal de comunicação para que o consumidor e o fornecedor do produto ou serviço cheguem a um consenso.

Se esse caminho não dá resultado, o site cria uma espécie de tribunal virtual em que o cliente e o vendedor são ouvidos e a plataforma julga quem tem razão.

Não há burocracia e não é obrigatório que as partes estejam assessoradas por advogados, como ocorre em um processo judicial comum no Judiciário. Essa prática em inglês é denominada ODR (Online Dispute Resolution, ou resolução de disputa online).

No Brasil, ela foi adotada pelo site Mercado Livre, que implementou diferentes procedimentos online para a resolução de conflitos, com o objetivo de diminuir o número de ações judiciais envolvendo o uso da plataforma.

Ricardo Lagreca, diretor jurídico da empresa, afirma que muitos potenciais conflitos são evitados com a possibilidade de o cliente cancelar a compra, dentro de um determinado prazo, caso se arrependa da compra ou não tenha recebido o produto.

Se o problema persiste, a plataforma coloca comprador e vendedor em contato, por meio de um chat, para que busquem uma solução amigável. Em caso de não haver acordo, a etapa seguinte inclui um funcionário do Mercado Livre que deve analisar o caso específico e verificar se o consumidor tem ou não razão.

Segundo Lagreca, boa parte das reclamações recebidas pela empresa atualmente —desconsiderando as resolvidas dentro do próprio Mercado Livre— vêm da plataforma Consumidor.gov.br, um portal da Secretaria Nacional do Consumidor que permite o contato direto entre as empresas cadastradas no site oficial e os consumidores.

A partir do registro de uma reclamação na plataforma, a empresa tem um prazo de dez dias para responder e os consumidores podem classificar a demanda como resolvida ou não.

Mesmo em situações fora das relações de consumo comuns e mais complexas, nas quais é necessária a assistência de um advogado, a mediação online pode ser adotada.

Esse ambiente virtual para composição amigável é oferecido por entidades de advogados como a AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), empresas e startups que unem tecnologia e direito.

Nesse mecanismo há mediadores com treinamento para discutir as várias possibilidades de solução do conflito e o que pode ocorrer se o caso for parar na Justiça.

Segundo o presidente da AASP, Renato Cury, deve ser abandonado o modelo profissional em que o advogado apresenta aos clientes somente a via do Judiciário, e os contatos entre eles só são para a entrega de documentos, preparação de audiências e comunicação sobre julgamentos.

“A advocacia está se transformando. Aquele advogado que não tiver no seu portfólio a possibilidade de oferecer ao seu cliente todos os caminhos possíveis para a solução do conflito vai ser um advogado ultrapassado”, diz Cury.

De acordo com Juliana Loss, coordenadora executiva no Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV, a abertura de diferentes portas para a resolução de conflitos —que não só o Judiciário— não deve ser vista como uma ameaça ao trabalho da advocacia, mas como uma nova área de atuação.

“Até para fazer um acordo é importante eu saber quais são os meus direitos, [senão] como vou saber que vou fazer um bom acordo?”, questiona Loss.

Há decisões judiciais e uma corrente de juristas que inclusive defendem a obrigatoriedade de se buscar uma tentativa de solução amigável antes de se bater às portas do Judiciário.

O advogado Ricardo Quass Duarte, sócio do escritório Souto Correa, sustenta a tese de que quando uma pessoa não procurou resolver o caso com a outra parte antes de iniciar uma causa, o juiz pode suspender o processo para que seja feita a tentativa de resolução e, caso a parte se recuse a fazê-lo, o magistrado pode encerrar o processo sem julgamento.

Segundo Duarte, quando não é feita a busca prévia por uma solução amigável, “você não provou a necessidade de ir ao Judiciário para obter o que você quer. Não provou a resistência da parte contrária. Pode ser que seu problema seja resolvido em dias, então você não precisa do Poder Judiciário”.

Bruno Takahashi, juiz federal e coordenador da central de conciliação da Justiça Federal em São Paulo, acredita que a sociedade como um todo ganha quando as pessoas conseguem lidar com seus conflitos e chegar a um consenso.

“Quando alguém bate no seu carro e você consegue ir lá e resolver o problema de quem vai pagar, quem não vai pagar ou quem vai acionar o seguro, a gente não precisa de nenhum envolvido [externo]. O conflito foi bem trabalhado pelas próprias pessoas que conhecem melhor o conflito que estão vivendo.”

Takahashi pontua, porém, que nem sempre esse é o melhor caminho e que isso vai depender também da área temática do conflito. Quando há disparidade de poder entre as partes, por exemplo, buscar um acordo pode não ser positivo para a parte com menos poder, segundo ele. “Nós precisamos ter alguma forma de diagnosticar quem são as pessoas envolvidas e qual o conflito existente.”

As iniciativas de maior protagonismo dos clientes chegam ao sistema do “faça você mesmo” no mundo jurídico. Mais disseminada no exterior, esse tipo de prática ainda dá os primeiros passos no Brasil.

Uma das empresas que adotou esse formato é a startup Manacá, que atua no setor de registro oficial de marcas desde o ano passado.

A companhia dá as orientações práticas e deixa para o dono da marca o trabalho de adotar as medidas burocráticas e fazer o pagamento de taxas, e realiza a supervisão de todo o processo, para verificar se tudo foi feito da forma correta. Para fazer essa supervisão, a startup cobra R$ 9,99 por mês.

Segundo o presidente executivo da empresa, Felipe Monteiro, “o objetivo foi criar uma solução que se adequasse à nova economia e que facilitasse o acesso àqueles que muitas vezes não podem contratar escritórios”.

Flávio Ferreira
Renata Galf